O movimento pró-vida brasileiro está dividido. O pivô da discussão é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 29/2015, apelidada de “PEC da Vida”, que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. A proposta, de autoria do ex-senador Magno Malta (PR-ES), pretendia explicitar, no artigo 5º da Constituição, que o direito à vida é inviolável “desde a concepção”, mas o relatório apresentado pela relatora, senadora Selma Arruda (PSL-MT), foi além ao propor que as duas exceções que hoje existem no Código Penal – aborto em caso de estupro e em caso de risco de vida para a mãe – sejam incluídas na Constituição. Críticos mais exagerados chegam a falar em “PEC da Morte”.
Nossas Convicções: Defesa da vida desde a concepção
A PEC 29/2015 estava em pauta para ser votada nesta quarta-feira (8), mas diante do impasse a relatora pediu sua retirada. Como a Gazeta do Povo adiantou em fevereiro, a proposta de Selma fez parte de um acordo costurado pelo senador Eduardo Girão (Pode-CE) e pela senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da CCJ, para que PEC pudesse tramitar no Senado. Para parlamentares pró-vida, a proposta seria uma barreira contra futuras decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que procurassem expandir um direito ao aborto. Parte dos senadores acredita, porém, que inserir a expressão “desde a concepção” na proteção à vida na Constituição revogaria as excludentes atuais do Código Penal.
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A solução de consenso foi apresentada pela relatora, mas tem sido criticada por lideranças pró-vida. A principal objeção, que alguns movimentos têm externado nas redes sociais, mas que a maioria prefere manifestar nos bastidores, é que não faz sentido transformar as excludentes de punibilidade do Código Penal em direitos constitucionais, muito mais difíceis de ser revertidos – se é que um dia poderão, já que podem vir a ser consideradas cláusulas pétreas. Quem defende a PEC, porém, argumenta que hoje ela é a única maneira de impedir o STF de legalizar o aborto no Brasil, o que também não é garantido.
Há ainda um terceiro grupo de senadores que apresentou emendas para incluir, nas exceções constantes da PEC 29/2015, a possibilidade de aborto de fetos anencefálicos, criada por decisão do STF em 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54. Como a decisão foi fruto daquilo que lideranças políticas consideram ativismo judicial por parte do Supremo, essa terceira hipótese ficou de fora da proposta da relatora. A hipótese de incluí-la na votação na CCJ, contudo, aguçou ainda mais a preocupação dos movimentos pró-vida.
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Está em pauta no STF, para o próximo dia 23 de maio, um pedido de liberação do aborto em casos de mães com diagnóstico de Zika vírus. Tramita ainda na corte a ADPF 442, proposta pelo PSOL, que quer liberar o aborto irrestritamente até a 12ª semana de gestação.
O que diz o relatório da senadora Selma Arruda?
No relatório apresentado à CCJ no último dia 10 de abril, a senadora Selma Arruda propõe um parágrafo ao artigo 5º da Constituição:
“Assegura-se a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção, não sendo punível o aborto exclusivamente nos seguintes casos: I - se não há outro meio de salvar a gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando absolutamente incapaz, de seu representante legal”.
Selma Arruda, que foi juíza durante 22 anos, argumenta que é um fato incontestável que a vida humana, no sentido biológico, começa na concepção. Mas ela nota que “houve uma instrumentalização ideológica, a partir dos anos 60, especialmente no meio universitário, como também em congressos médicos, na difusão de uma mentalidade contraceptiva, de desprestígio da maternidade, em que os promotores da agenda do aborto buscaram relativizar o que até então a ciência já tinha como dado irrefutável”, o que não impede que “mesmo assim, cada vez mais [se amplie] a consciência, em âmbito internacional, do valor e da dignidade da vida humana, que deve ser protegida desde o primeiro instante, desde a concepção”.
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A senadora afirma que “toda a tradição do Direito, até hoje, considera [a vida] um dos mais fundamentais direitos do homem, por isso o Código Penal brasileiro não reconhece o aborto como direito”. De fato, o que o Código Penal brasileiro diz, no seu artigo 128, é que “não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. No entanto, militantes pró-aborto transformaram as duas excludentes de punibilidade em um “direito ao aborto” que foi regulamentado por portaria do SUS durante a gestão de José Serra no Ministério da Saúde, durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Selma argumenta ainda que se opor ao aborto é defender a vida tanto do ser humano não nascido quanto das mulheres. “Os fatos comprovam os danos causados pelo aborto provocado à saúde das mulheres: aumento de suicídio (seis vezes mais em mulheres que praticaram o aborto em relação àquelas que se tornaram mães, conforme pesquisa realizada no Reino Unido), aumento de depressão, transtornos mentais e ansiedade, e tantas outras sequelas com impacto físico, emocional e mental”, diz.
O que dizem as emendas apresentadas na CCJ?
No último dia 24, durante a discussão da matéria, dois senadores apresentaram emendas ao texto. Fabiano Contarato (Rede-ES) e Alessandro Vieira (CD-SE), o mesmo da CPI da Lava Toga, querem incluir entre as exceções da PEC os casos de gravidez de fetos anencefálicos, decidida pelo STF em 2012. A possibilidade preocupou ainda mais movimentos pró-vida e, diante do impasse, a relatora Selma Arruda pediu a retirada do projeto da pauta.
A emenda de Vieira é igual à de Selma, exceto pela inclusão da hipótese de não punibilidade do aborto “se houver diagnóstico de feto anencéfalo, mediante laudo assinado por dois médicos capacitados para tal reconhecimento”.
“Tal proposta de emenda não retira o mérito do direito amplamente tutelado pela ordem constitucional vigente. O direito à vida, além de um direito fundamental, é basilar para a existência de demais prerrogativas fundamentais do ordenamento jurídico. Mas cabe ponderar que o direito a uma vida digna também é essencial para a plenitude das capacidades humanas”, argumenta Vieira.
Mas a proposta de Contarato é mais grave, porque o senador, além de contemplar as três hipóteses, propõe que o texto constitucional diga que “não é crime” – e não que não se pune – o aborto quando praticado em um dos três casos.
“Creio ser nosso papel, enquanto representantes do povo, legislar sobre o assunto e assentarmos que não deve ser submetido a um processo crime a mulher que decide abortar um feto cuja vida extrauterina é sabidamente inviável. A dor que essa mulher suporta já nos parece um fardo pesado demais para carregar. Não deve ser o Estado brasileiro responsável por lhe imputar mais um sofrimento que, devemos reconhecer, não servirá para qualquer fim penal ressocializador ou intimidatório”, diz Contarato.
O que dizem aqueles que defendem a PEC?
A principal voz na defesa da PEC, além do senador Eduardo Girão, que foi responsável pelo seu desarquivamento, é o ex-deputado Luiz Bassuma, autor do Estatuto do Nascituro, que tramita na Câmara. Bassuma foi perseguido pelo PT por sua posição em defesa da vida e acabou saindo do partido em 2009. Em audiência na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado sobre o Zika vírus e a microcefalia, no último dia 25, o ex-deputado defendeu a janela de oportunidade que se abriu para aprovar a PEC 29/2015 e se contrapor ao STF, já que atualmente não há chances de o Congresso legalizar o aborto.
“Por que não se fez nada desde a Legislatura passada? Não tinha chance nenhuma de tramitar no Senado, porque existiam senadoras muito atuantes, fortemente formadoras de opinião, a favor do aborto”, disse Bassuma, embora sem nomeá-las, referindo-se às ex-senadoras Gleisi Hoffmann (PT-PR), Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Fátima Bezerra (PT-RN) e Martha Suplicy (MDB-SP). “O Senado tem hoje 13 senadoras mulheres, nenhuma das 13 senadoras defende o aborto, são todas favoráveis à vida. Nunca aconteceu isso na história da República brasileira”, afirmou.
Bassuma, no entanto, avalia que a “PEC dos sonhos” – ou seja, a que protege a vida desde a concepção sem exceções – só teria o voto do próprio Girão. “Só cedendo, flexibilizando, para manter aquilo que o Código Penal garante há mais de 60 anos, que são as excludentes”, disse. “Com isso, passa [...] Aqui é a casa do possível, a política não é a casa do ideal”, completou.
Quais são as críticas ao relatório da senadora Selma Arruda?
Bassuma, porém, destacou que a maior parte dos deputados pró-vida está contra a tramitação da PEC nos termos propostos por Selma e Girão e que, na Câmara, “o clima é outro”. De fato, a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família não tem posição sobre o tema, as deputadas pró-aborto têm força retórica na Câmara, e o presidente da casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não só disse que a agenda econômica tem prioridade sobre a agenda de costumes como já sinalizou que gostaria que as questões morais fossem discutidas depois que seu mandato acabasse, isto é, somente a partir de janeiro 2021.
Embora a maioria das lideranças pró-vida esteja evitando fazer críticas amplas à PEC 29/2015, o centro Pró-Vida Anápolis, um dos mais atuantes do país, soltou uma nota sobre o tema. “Graças à ‘PEC da Vida’, pela primeira vez na história a não punição do aborto figuraria na nossa Constituição entre os ‘direitos e garantias fundamentais’ (!). Tornar-se-ia uma cláusula pétrea, ou seja, não poderia ser abolida sequer por emenda à Constituição! E como erroneamente, mas habitualmente, esta não aplicação da pena é interpretada como uma permissão para abortar, o suposto ‘direito ao aborto’ estaria em nossa Carta Magna, graças a uma PEC feita para defender a vida!”, diz a nota.
“Com as concessões feitas pelo senador Eduardo Girão, a PEC 29/2015 tornou-se a PEC da Morte. Como seria bom se ele e seus aliados se conservassem intransigentes na defesa da vida e da verdade e coubesse a nós pedir aos outros parlamentares que apoiassem sua proposta... Como, porém, a PEC da Vida sofreu um giro de 180º (um ‘girão’), não nos resta senão alertar ao senador para que desperte do delírio que está sofrendo, que pode ser fatal para a nação brasileira”, completa o texto.
Outro ponto destacado nos bastidores é que nem mesmo a aprovação da PEC garantiria que o STF não legalizará o aborto no Brasil. Como esta Gazeta do Povo já mostrou, o pedido da ADPF 442, usando o método da proporcionalidade, argumenta que as mulheres teriam o direito a abortar mesmo que os seres humanos não nascidos tenham direito à vida. Assim, faria ainda menos sentido inserir as exceções na Constituição, sem nem mesmo ter a garantia de que o objetivo principal da PEC seria atingido.
O ministro Luís Roberto Barroso – que, aliás, foi advogado na ação que legalizou o aborto no caso dos fetos anencefálicos – já mostrou concordância com essa tese da ADPF 442 em agosto do ano passado, no Rio de Janeiro. “Entendo quem diz que a vida começa na concepção. Mas, mesmo que aí já houvesse vida, se esta depende da mulher, a escolha deve ser dela. O Estado não tem o direito de obrigar uma mulher a permanecer grávida”, disse Barroso na ocasião.
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